Como um atento e externo observador da sociedade brasileira nos últimos meses, nada, mas nada mesmo tem me chocado tanto quanto os casos generalizados e espalhados por todoo Brasil de violência contra a mulher. Não, não vou reclamar que as brasileiras usam pouca roupa, não vou dizer que há um bando de piriguetes que provocam os homens e os fazem fazer besteira e não, não vou buscar qualquer relação agressor-vítima que justifique essa violência. Preocupa-me algo um pouco mais metafísico: o conflito entre liberdade e liberalidade sexual.
Nossa “moderna” sociedade brasileira (apesar de estar longe, me considero parte e responsável por ela) teoricamente está calcada na liberdade, esse princípio que compõe a tríade iluminista juntamente com a igualdade e a fraternidade. Contudo, foi essa mesma sociedade “moderna” que foi profícua em apresentar todas as maiores violações a esses princípios. Não, ela não é de todo má. Ela superou a segregação, mas não enfrentou o racismo; ela avançou no combate à pobreza, mas não acabou com a desigualdade; ela garantiu direitos políticos, civis e coletivos, mas não criou cidadania; ou seja, ela não enfrentou a essência de cada um desses problemas, simplesmente mascarou aquilo que parecia coletivamente imoral.
É nesse contexto que se encontra pendente a questão da liberalidade sexual. Talvez, considerar mulheres como iguais perante a lei, tenha sido um grande passo. Algo que ainda está longe de acontecer com homossexuais, transexuais, bissexuais (mas esse não é ocaso neste post, que se destina a discutir com a Camilla Magalhães o horror dos últimos acontecimentos, na blogagem coletiva promovida pelo Blogueiras Feministas). O que preocupa é a profundidade do conflito e do entendimento do que seja liberalidade sexual e como ela justifica, nas bocas das conversas de bar dos extratos A, B, C, D, E e F da sociedade, a prática do estupro.
Com frequência inacreditável, ouve-se coisas como: “se ela não fosse tão vadia”, ou “se ela não ficasse galinhando e se alisando”, ou “com uma roupa daquelas com o cú de fora”, ou “tá na hora de pegar as bitchs”, ou “deu mole, eu pego mesmo”. Isso sai da boca de homens e mulheres e essas acrescentam: “porque se ela se desse ao respeito”, com a mão no coração e olhando o céu, como cantando um hino. O pior, o máximo de reação em qualquer dessas mesas de bar é uma risada coletiva, uma piadinha mais suja e um sorrisinho de constrangimento quando a “carapuça veste”. Raramente se vê uma cara de desgosto quando, de fato, todo esse contexto é entendido como parte de toda agressão sexual contra a mulher.
O que falta a nossa sociedade é entender que a liberalidade sexual é parte da liberdade de qualquer um. E que a liberdade de qualquer um está limitada e limita a liberdade de todos os demais. O que parecemos não entender e, se entendemos, não somos capazes de discutir seriamente nas mesas de bar e em qualquer outro contexto, é que a liberalidade sexual de qualquer pessoa não nos dá o direito de querer que elas façam conosco o que elas não querem. O que quero dizer com isso é que, “promíscua”, “indecentemente vestida”, ou “escandalosa”, a liberalidade da pessoa só vai resultar em sexo para a outra se ambas estiverem de acordo e NÃO HÁ qualquer outra situação que justifique isso.
Por isso, da próxima vez em que você se ver em um círculo em que a liberalidade sexual de alguém seja utilizada para justificar um coito forçado, um beijo roubado, um embebedamento que facilite “pegar” a vítima, utilize sua liberdade para dizer que ISSO É ESTUPRO e que você NÃO COLABORA COM ISSO. Caso contrário, bem vindo ao tribunal, você também é responsável por permitir que a nossa sociedade entenda que a vontade sexual de alguns pode se sobrepor a de outros. Mas não se preocupe, se a culpa é coletiva, ela não é de ninguém; você não será punido até virar vítima.
Londres, 17 de fevereiro de 2012
*Esse texto não faz qualquer referência aos fatos e pessoas envolvidos nos crimes ocorridos na cidade de Queimadas-PB, apenas utiliza as notícias veiculadas sobre o caso e outros recentes para trazer a problemática coletiva do estupro à tona.
4 comentários:
Realmente uma sociedade que se pauta na mídia para adquirir seus conhecimentos, ao invés dos livros, só pode resultar no que você descreveu logo acima. Pior do que sofrermos uma pressão midiática, é estarmos cientes do ocorrido e nada se fazer a respeito disso. Já cheguei a ouvir comentários irritados de pessoas supostamente estudadas (ao menos tiveram esta oportunidade) que discordavam de certos assuntos porque o "Bonner falou no jornal nacional e se ele falou é porque está correto". Eu, cada vez mais tenho vergonha deste país e não tenho qualquer esperança de uma melhora significativa.
Então, querido,quando você diz: discutir com Camilla (...) você quis dizer o que? Porque para mim esse seu texto é o complemento perfeito do meu. Você quis discordar em algum ponto, ou discutir no sentido de ampliar o debate?
De toda forma, gostei muito do texto.
Parabéns e obrigada.
Pior é nossa facilidade de convivermos com essa "culpa" coletiva ou com essa "violência" coletiva, sem olharmos para quem a fomenta. Eu sou "politicamente correta" mesmo e discuto piada machista em mesa de bar. Recomendo esse exercício a tod@s!
Ótimo texto! Abs.
Discutir: "fazer o debate acontecer". Achei seu texto na sacada certa. Aliás, a frase "E nessas horas de espanto, o simples vem à mente: é preciso repetir sempre e todos os dias e para todas as pessoas que devemos ensinar o homem a não estuprar, ao contrário de perpetuar o raciocínio machista de que seria preciso ensinar a mulher a como se comportar". Foi bem o que estimulou o meu! ;)
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