domingo, 20 de dezembro de 2009

Na cama com Santo Agostinho, ou a tragédia da liberdade

O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma cadeia com que me apertava. Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. Era assim que por uma espécie de anéis entrelaçados – por isso lhes chamei cadeia –, me segurava apertado em dura escravidão. A vontade nova, que começava a existir em mim, a vontade de Vos honrar gratuitamente e de querer gozar de Vós, ó meu Deus, único contentamento seguro, ainda se não achava apta para superar a outra vontade, fortificada pela concupiscência. Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal, outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilacerava-me a alma. (AGOSTINHO. 2000:209)[1].


A tragédia da liberdade se encontra na vontade. A tomada de decisão e a opção por um caminho diferente da natureza individual consistem no doloroso processo de manifestar-se na grande política. Assim, a expressão livre da vontade, contrariando o pessoal em nome do moral, o individual em nome do coletivo e o terreno em nome do divino, representa o ápice do auto-cerceamento da liberdade em prol de uma instituição simbólica superior.

Esse é o contexto da conversão agostiniana ao catolicismo e, alegoricamente, da sujeição individual ao Estado. O enfrentamento dos “prazeres da carne” e das questões relativas a um modo de vida mundano pelo Santo faz paralelo à constrição da liberdade individual pelo ser político-divino moderno. Em ambos os casos, a política ocorre no leito, na cama onde ora se trava a laboriante luxúria, ora se vive a epifania da revelação do superlativo.

Responder à vontade primária das relações de espécie, manifestando os veios individuais do estado de natureza, representa o exercício político da liberdade plena. Assim o viveu Agostinho em seu êxtase pré-conversão. Essa foi a sina das pequenas coletividades anteriores ao estabelecimento de regras cogentes que, aceitas por volição, minoraram o aspecto licencioso da existência. Antes disso,

[...] os próprios prazeres da vida humana não se apossam do coração do homem só por desgraças inesperadas e fortuitas, mas por moléstias previstas e voluntariamente procuradas. Não há prazer nenhum no comer e beber, se o incômodo da fome e da sede não o precede. (AGOSTINHO. 2000:206/207).

Estar na cama negra da política primordial correspondia, nessa perspectiva, ao pleno exercício da individualidade contra o coletivo, na possibilidade de não viver o incômodo por não se ter restrição ao saná-lo. A segunda política, por seu turno, precisou criar uma entidade superior para se fazer grande. Para tanto, um fator foi o grande responsável para o direcionamento agostiniano/individual ao leito branco da virtude: a atribuição de significado ao supremo uno.

Para Santo Agostinho, o cerceamento da vontade primária, da liberdade de exercício político fundamental, só se deu com a vontade de se submeter ao totalizante:

Com efeito, não só ir ao céu, mas também atingi-lo não são mais que o querer ir, mas um querer forte e total, não uma vontade tíbia que anda e desanda daqui para ali, que luta consigo mesma, erguendo-se num lado e caindo no outro. (AGOSTINHO. 2002:216. grifos do autor).

Tal Confissão evidencia que a liberdade pura só passa a ter significado quando submetida a algo capaz de dotar sentido à vontade. Tal ocorre, também, na opção pelo Estado da grande política. Nele, o leito limpo e puro do exercício coletivo das vontades só se realiza no ambiente pleno do cerceamento da liberdade individual em função daquilo que é supremo, pretensamente seguro.

A tragédia da liberdade, nesse contexto, não se encontra na sua ausência ou dissipação, mas na sua plenitude. Está no fato de o exercício dessa prerrogativa ser de tal abrangência que se permite, inclusive, vincular-se e restringir-se perante algo. A escolha pela atribuição de significado ao totalizante – ao Deus único, ou ao Estado – e pela sujeição da vontade individual a esse coletivo – o Deus de todos e o Estado para todos – estão no cerne dessa transição de uma política da individualidade para uma política do coletivo.

Por conseguinte, já não importa mais a plena liberdade, ao contrário, o que impera é a decisão de sujeitá-la ao poder sublime. A guerra de vontades é o que melhor demonstra esse paradoxo político, desvendando que Ser Livre pode tanto Ser-de-Vontade, como também pode Vontade-de-Ser. Na primeira forma vive-se a liberdade; na segunda, a tragédia da existência na grande política.



São Paulo, 10 de setembro de 2009



[1] AGOSTINHO, S. Confissões. In. Os Pensadores: Santo Agostinho. São Paulo: Nova Cultural, 2000.