domingo, 13 de novembro de 2011

Nós queremos Barrabás!

Hoje, depois de duas semanas de notícias horrorosas das ações do Estado no Brasil e depois de ler um excelente texto sobre esses tempos interessantes intitulado “Ilusões (des)necessárias”, escrito pela Camilla Magalhães Gomes no Blogueiras Feministas, resolvi sair para uma caminhada e para refletir.

Depois de um bom passeio pelo St James Park, resolvi seguir uma parada de comemoração do Remembrance Sunday (Domingo da Lembrança), que coincide com o segundo domingo de Novembro e a semana do dia 11 de novembro, que foi a data de assinatura do Armistício a Primeira Guerra Mundial e os britânicos saem às ruas para, de várias maneiras, homenagearem os que lutaram e morreram pela pátria nos conflitos armados travados pela Grã-Bretanha. A caminhada me levou de volta à Trafalgar Square e acabei entrando na National Galery. Lá, me deparei com uma obra do pintor holandês Rembrandt (um estudo) representando a passagem bíblica em que Pilatos apresenta o prisioneiro Jesus de Nazaré à multidão, chamada de “Ecce Homo”.

A imagem nesse pequeno quadro (54,5 X 44,5cm), muito forte e extremamente caricaturada na história e na filosofia ocidental, me levou a fazer algumas pequenas observações e alusões sobre a situação política brasileira e pensar mais sobre as reações que as pessoas vêm demonstrando nas redes sociais. Nessas “reflexões”, claro, estou me dando ao luxo de abusar um pouco do maniqueísmo cristão e tomar a figura do Cristo como um importante ator social, político e histórico.

Jesus foi um manifestante. Autodeclarado Rei dos Judeus, promoveu uma grande arregimentação de seguidores e conduziu uma série de manifestações. Essas manifestações incluíram: a violação da propriedade pública e privada ao destruir as barracas de comércio no Templo de Jerusalém; a desobediência civil, ao se colocar em frente aos algozes que cumpririam a pena de apedrejamento da mulher adúltera; e foi uma importante figura política de confrontação do regime político da época.

Alguns mais exaltados vão apontá-lo, ainda, como conspirador (reunir discípulos para confrontar o regime), asceta (utilizar a fé judaica para trazer para si o único caminho para o Pai, os engraçadinho chamarão isso de nepotismo), vê-lo como alguém que exercia irregularmente a medicina (milagres????) e, talvez, até que fosse pego por alguma blitz da lei seca, ao guiar o seu jumentinho depois de tanto bom vinho nas Bodas de Caná.

Afastando-me dos extremismos e de toda uma mitologia cristã, de um ponto de vista político e social, Jesus foi um grande defensor de três princípios básicos da Democracia: igualdade, liberdade e fraternidade. Suas ações representaram um potencial de manifestação e mobilização de pessoas que, 500 anos depois, culturalmente destruiu o Império Romano.

Por esse poder de manifestação, o Messias foi apresentado pelo Estado Romano ao público judeu, que decidiu por sua culpa e execução e pela libertação de Barrabás (aparentemente seguindo a tradição de poder remir a pena de um condenado à época da Páscoa), o criminoso já condenado à morte.

Barrabás, nessa estória toda, representa a escolha do povo Judeu por um assassino (o mal) em detrimento de seu salvador (o bem) e tudo isso por quê? Provavelmente pelo fato de que um representava a efetividade da ordem (no fim, cumpre-se) e o outro a transgressão da ordem (utiliza-se de meios não tradicionais para manifestar-se), um era reconhecidamente um criminoso e o outro um baderneiro e, tolera-se o primeiro desde que contido, mas não o segundo.

Mas, saindo do maniqueísmo, o que isso tem a ver com o que se passa no Brasil? Na realidade nada, porém, como já disse, me dou o privilégio de fazer a alusão. Primeiro, mais polêmicos, os estudantes da USP, invadiram a propriedade do Estado e destruíram-na. Segundo, os estudantes da UnB, baderneiros, bagunçaram a sessão do Senado que “discutia” o projeto de Código Florestal. Terceiro, o tráfico de drogas arregimentou boa parte dos filhos das comunidades das favelas cariocas e trouxeram caos para o Rio de Janeiro impedindo o progresso da cidade e os grandes eventos esportivos.

Frente a isso, quais são as reações do nosso Estado e da nossa Sociedade? O Estado condenou os três. Contra os estudantes da USP, o Batalhão de Choque da PM; contra os estudantes da UnB tiros não letais de choque elétrico, contra a massa desempregada arregimentada nas favelas cariocas (Alemão, Rocinha, Vidigal...), as Forças Armadas.

Mas o que isso tem de errado? Pensado pela finalidade da ação, nada. Quem depreda o patrimônio público ou privado deve responder criminal e civilmente por suas ações; as polícias podem acompanhar e conter manifestações e evitar seus excessos; e o Estado tem que combater o crime organizado e o tráfico de drogas, permitido que sem a violência a sociedade viva com uma melhor qualidade de vida.

Pensando pelos meios há muito que ser dito, pois em uma sociedade democrática, observar os meios é a forma de se verificar a legitimidade do Estado em suas ações. Assim, nessa outra perspectiva, tem-se um problema quando, contra aqueles que violaram e depredaram a propriedade, utiliza-se o Batalhão de Choque da Polícia Militar (destacamento especializado no tratamento de crimes violentos e do crime organizado) armado até os dentes. Colocar um contingente de 300 homens contra 75 estudantes e depois mantê-los presos em um ônibus por mais de 15 horas debaixo de sol quente rompe com qualquer parâmetro de bom senso, de humanidade e muito menos de democracia.

Contra os manifestantes que protestavam contra o projeto do Código Florestal que era discutido no Senado, utilizou-se a arma não letal, o choque elétrico. O problema é que desobediência civil não se combate com violência física! Combate-se com presença, ação e debate por parte do Estado. Protestar contra um dos processos legislativos mais elitistas que se conhece é extremamente legítimo e isso não pode ser reprimido dessa forma se estamos querendo tornar o nosso processo político (e legislar é principal nele) mais democrático.

Por fim, alardear por meio da mídia de massa que a favela será invadida, para que os traficantes “fujam” antes da ocupação e, depois, usar as forças armadas (no caso a marinha) contra a própria população civil é, simplesmente, inadmissível em uma ordem constitucional decente. Na Rocinha ainda foi “menos pior” pelo fato de que a incolumidade física das pessoas foi preservada, embora o terror psicológico promovido por tráfico e pelo Estado deva ter sido insuportável. Lembrando da ocupação do Complexo do Alemão há um ano, as forças armadas e o Estado mataram, dentre traficantes e pais e família, cerca de 300 pessoas.

E a sociedade? Bem, pela maioria das reportagens, dos comentários às notícias dos jornais online e das manifestações nas redes sociais, escolheu Barrabás. Optando pela cega efetividade da ordem, a Sociedade Brasileira está comprando a ilusão desnecessária (para usar o termo da Camilla) de que os meios utilizados “tem que ser esses”, pois não há alternativa.

Me esquivando de qualquer crítica aos extremistas de direita (esses não merecem ser respondidos) que defendem abertamente a truculência e os métodos anti-democráticos e, pior, clamam pelo retorno dos “bons tempos da ditadura”, me preocupa o fato de somente escutar a aberração acrítica de que “para quem descumpriu a lei, todo o rigor da ação do Estado”. Apoiado nesse tipo de opinião, o Estado lava suas mãos e se mantém no mesmo patamar, como não precisa usar a democracia contra quem o contesta, também não precisa com que o apoia.

Mas não se preocupem, fiquem com Barrabás. Aceitem que nosso Estado utilize táticas não democráticas e mantenham (sim, a responsabilidade é nossa, não do Estado) mais 500 anos dessa nossa realidade político-social. A mudança há de ocorrer, a democracia real há de se instaurar e romper com tamanha afronta à liberdade, à igualdade e à fraternidade, só poderia ser mais rápido! Como Barrabás e Pilatos que não viram o fim de Roma, nesse passo, não veremos nosso se concretizar como uma Democracia... No meu caso, me resta falar!


Londres, 13 de novembro de 2011