sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Como você contribui para o estupro de mulheres, ou quando a culpa é coletiva, ela não é de ninguém*





Como um atento e externo observador da sociedade brasileira nos últimos meses, nada, mas nada mesmo tem me chocado tanto quanto os casos generalizados e espalhados por todoo Brasil de violência contra a mulher. Não, não vou reclamar que as brasileiras usam pouca roupa, não vou dizer que há um bando de piriguetes que provocam os homens e os fazem fazer besteira e não, não vou buscar qualquer relação agressor-vítima que justifique essa violência. Preocupa-me algo um pouco mais metafísico: o conflito entre liberdade e liberalidade sexual.

Nossa “moderna” sociedade brasileira (apesar de estar longe, me considero parte e responsável por ela) teoricamente está calcada na liberdade, esse princípio que compõe a tríade iluminista juntamente com a igualdade e a fraternidade. Contudo, foi essa mesma sociedade “moderna” que foi profícua em apresentar todas as maiores violações a esses princípios. Não, ela não é de todo má. Ela superou a segregação, mas não enfrentou o racismo; ela avançou no combate à pobreza, mas não acabou com a desigualdade; ela garantiu direitos políticos, civis e coletivos, mas não criou cidadania; ou seja, ela não enfrentou a essência de cada um desses problemas, simplesmente mascarou aquilo que parecia coletivamente imoral.

É nesse contexto que se encontra pendente a questão da liberalidade sexual. Talvez, considerar mulheres como iguais perante a lei, tenha sido um grande passo. Algo que ainda está longe de acontecer com homossexuais, transexuais, bissexuais (mas esse não é ocaso neste post, que se destina a discutir com a Camilla Magalhães o horror dos últimos acontecimentos, na blogagem coletiva promovida pelo Blogueiras Feministas). O que preocupa é a profundidade do conflito e do entendimento do que seja liberalidade sexual e como ela justifica, nas bocas das conversas de bar dos extratos A, B, C, D, E e F da sociedade, a prática do estupro.

Com frequência inacreditável, ouve-se coisas como: “se ela não fosse tão vadia”, ou “se ela não ficasse galinhando e se alisando”, ou “com uma roupa daquelas com o cú de fora”, ou “tá na hora de pegar as bitchs”, ou “deu mole, eu pego mesmo”. Isso sai da boca de homens e mulheres e essas acrescentam: “porque se ela se desse ao respeito”, com a mão no coração e olhando o céu, como cantando um hino. O pior, o máximo de reação em qualquer dessas mesas de bar é uma risada coletiva, uma piadinha mais suja e um sorrisinho de constrangimento quando a “carapuça veste”. Raramente se vê uma cara de desgosto quando, de fato, todo esse contexto é entendido como parte de toda agressão sexual contra a mulher.

O que falta a nossa sociedade é entender que a liberalidade sexual é parte da liberdade de qualquer um. E que a liberdade de qualquer um está limitada e limita a liberdade de todos os demais. O que parecemos não entender e, se entendemos, não somos capazes de discutir seriamente nas mesas de bar e em qualquer outro contexto, é que a liberalidade sexual de qualquer pessoa não nos dá o direito de querer que elas façam conosco o que elas não querem. O que quero dizer com isso é que, “promíscua”, “indecentemente vestida”, ou “escandalosa”, a liberalidade da pessoa só vai resultar em sexo para a outra se ambas estiverem de acordo e NÃO HÁ qualquer outra situação que justifique isso.

Por isso, da próxima vez em que você se ver em um círculo em que a liberalidade sexual de alguém seja utilizada para justificar um coito forçado, um beijo roubado, um embebedamento que facilite “pegar” a vítima, utilize sua liberdade para dizer que ISSO É ESTUPRO e que você NÃO COLABORA COM ISSO. Caso contrário, bem vindo ao tribunal, você também é responsável por permitir que a nossa sociedade entenda que a vontade sexual de alguns pode se sobrepor a de outros. Mas não se preocupe, se a culpa é coletiva, ela não é de ninguém; você não será punido até virar vítima.


Londres, 17 de fevereiro de 2012


*Esse texto não faz qualquer referência aos fatos e pessoas envolvidos nos crimes ocorridos na cidade de Queimadas-PB, apenas utiliza as notícias veiculadas sobre o caso e outros recentes para trazer a problemática coletiva do estupro à tona.

domingo, 13 de novembro de 2011

Nós queremos Barrabás!

Hoje, depois de duas semanas de notícias horrorosas das ações do Estado no Brasil e depois de ler um excelente texto sobre esses tempos interessantes intitulado “Ilusões (des)necessárias”, escrito pela Camilla Magalhães Gomes no Blogueiras Feministas, resolvi sair para uma caminhada e para refletir.

Depois de um bom passeio pelo St James Park, resolvi seguir uma parada de comemoração do Remembrance Sunday (Domingo da Lembrança), que coincide com o segundo domingo de Novembro e a semana do dia 11 de novembro, que foi a data de assinatura do Armistício a Primeira Guerra Mundial e os britânicos saem às ruas para, de várias maneiras, homenagearem os que lutaram e morreram pela pátria nos conflitos armados travados pela Grã-Bretanha. A caminhada me levou de volta à Trafalgar Square e acabei entrando na National Galery. Lá, me deparei com uma obra do pintor holandês Rembrandt (um estudo) representando a passagem bíblica em que Pilatos apresenta o prisioneiro Jesus de Nazaré à multidão, chamada de “Ecce Homo”.

A imagem nesse pequeno quadro (54,5 X 44,5cm), muito forte e extremamente caricaturada na história e na filosofia ocidental, me levou a fazer algumas pequenas observações e alusões sobre a situação política brasileira e pensar mais sobre as reações que as pessoas vêm demonstrando nas redes sociais. Nessas “reflexões”, claro, estou me dando ao luxo de abusar um pouco do maniqueísmo cristão e tomar a figura do Cristo como um importante ator social, político e histórico.

Jesus foi um manifestante. Autodeclarado Rei dos Judeus, promoveu uma grande arregimentação de seguidores e conduziu uma série de manifestações. Essas manifestações incluíram: a violação da propriedade pública e privada ao destruir as barracas de comércio no Templo de Jerusalém; a desobediência civil, ao se colocar em frente aos algozes que cumpririam a pena de apedrejamento da mulher adúltera; e foi uma importante figura política de confrontação do regime político da época.

Alguns mais exaltados vão apontá-lo, ainda, como conspirador (reunir discípulos para confrontar o regime), asceta (utilizar a fé judaica para trazer para si o único caminho para o Pai, os engraçadinho chamarão isso de nepotismo), vê-lo como alguém que exercia irregularmente a medicina (milagres????) e, talvez, até que fosse pego por alguma blitz da lei seca, ao guiar o seu jumentinho depois de tanto bom vinho nas Bodas de Caná.

Afastando-me dos extremismos e de toda uma mitologia cristã, de um ponto de vista político e social, Jesus foi um grande defensor de três princípios básicos da Democracia: igualdade, liberdade e fraternidade. Suas ações representaram um potencial de manifestação e mobilização de pessoas que, 500 anos depois, culturalmente destruiu o Império Romano.

Por esse poder de manifestação, o Messias foi apresentado pelo Estado Romano ao público judeu, que decidiu por sua culpa e execução e pela libertação de Barrabás (aparentemente seguindo a tradição de poder remir a pena de um condenado à época da Páscoa), o criminoso já condenado à morte.

Barrabás, nessa estória toda, representa a escolha do povo Judeu por um assassino (o mal) em detrimento de seu salvador (o bem) e tudo isso por quê? Provavelmente pelo fato de que um representava a efetividade da ordem (no fim, cumpre-se) e o outro a transgressão da ordem (utiliza-se de meios não tradicionais para manifestar-se), um era reconhecidamente um criminoso e o outro um baderneiro e, tolera-se o primeiro desde que contido, mas não o segundo.

Mas, saindo do maniqueísmo, o que isso tem a ver com o que se passa no Brasil? Na realidade nada, porém, como já disse, me dou o privilégio de fazer a alusão. Primeiro, mais polêmicos, os estudantes da USP, invadiram a propriedade do Estado e destruíram-na. Segundo, os estudantes da UnB, baderneiros, bagunçaram a sessão do Senado que “discutia” o projeto de Código Florestal. Terceiro, o tráfico de drogas arregimentou boa parte dos filhos das comunidades das favelas cariocas e trouxeram caos para o Rio de Janeiro impedindo o progresso da cidade e os grandes eventos esportivos.

Frente a isso, quais são as reações do nosso Estado e da nossa Sociedade? O Estado condenou os três. Contra os estudantes da USP, o Batalhão de Choque da PM; contra os estudantes da UnB tiros não letais de choque elétrico, contra a massa desempregada arregimentada nas favelas cariocas (Alemão, Rocinha, Vidigal...), as Forças Armadas.

Mas o que isso tem de errado? Pensado pela finalidade da ação, nada. Quem depreda o patrimônio público ou privado deve responder criminal e civilmente por suas ações; as polícias podem acompanhar e conter manifestações e evitar seus excessos; e o Estado tem que combater o crime organizado e o tráfico de drogas, permitido que sem a violência a sociedade viva com uma melhor qualidade de vida.

Pensando pelos meios há muito que ser dito, pois em uma sociedade democrática, observar os meios é a forma de se verificar a legitimidade do Estado em suas ações. Assim, nessa outra perspectiva, tem-se um problema quando, contra aqueles que violaram e depredaram a propriedade, utiliza-se o Batalhão de Choque da Polícia Militar (destacamento especializado no tratamento de crimes violentos e do crime organizado) armado até os dentes. Colocar um contingente de 300 homens contra 75 estudantes e depois mantê-los presos em um ônibus por mais de 15 horas debaixo de sol quente rompe com qualquer parâmetro de bom senso, de humanidade e muito menos de democracia.

Contra os manifestantes que protestavam contra o projeto do Código Florestal que era discutido no Senado, utilizou-se a arma não letal, o choque elétrico. O problema é que desobediência civil não se combate com violência física! Combate-se com presença, ação e debate por parte do Estado. Protestar contra um dos processos legislativos mais elitistas que se conhece é extremamente legítimo e isso não pode ser reprimido dessa forma se estamos querendo tornar o nosso processo político (e legislar é principal nele) mais democrático.

Por fim, alardear por meio da mídia de massa que a favela será invadida, para que os traficantes “fujam” antes da ocupação e, depois, usar as forças armadas (no caso a marinha) contra a própria população civil é, simplesmente, inadmissível em uma ordem constitucional decente. Na Rocinha ainda foi “menos pior” pelo fato de que a incolumidade física das pessoas foi preservada, embora o terror psicológico promovido por tráfico e pelo Estado deva ter sido insuportável. Lembrando da ocupação do Complexo do Alemão há um ano, as forças armadas e o Estado mataram, dentre traficantes e pais e família, cerca de 300 pessoas.

E a sociedade? Bem, pela maioria das reportagens, dos comentários às notícias dos jornais online e das manifestações nas redes sociais, escolheu Barrabás. Optando pela cega efetividade da ordem, a Sociedade Brasileira está comprando a ilusão desnecessária (para usar o termo da Camilla) de que os meios utilizados “tem que ser esses”, pois não há alternativa.

Me esquivando de qualquer crítica aos extremistas de direita (esses não merecem ser respondidos) que defendem abertamente a truculência e os métodos anti-democráticos e, pior, clamam pelo retorno dos “bons tempos da ditadura”, me preocupa o fato de somente escutar a aberração acrítica de que “para quem descumpriu a lei, todo o rigor da ação do Estado”. Apoiado nesse tipo de opinião, o Estado lava suas mãos e se mantém no mesmo patamar, como não precisa usar a democracia contra quem o contesta, também não precisa com que o apoia.

Mas não se preocupem, fiquem com Barrabás. Aceitem que nosso Estado utilize táticas não democráticas e mantenham (sim, a responsabilidade é nossa, não do Estado) mais 500 anos dessa nossa realidade político-social. A mudança há de ocorrer, a democracia real há de se instaurar e romper com tamanha afronta à liberdade, à igualdade e à fraternidade, só poderia ser mais rápido! Como Barrabás e Pilatos que não viram o fim de Roma, nesse passo, não veremos nosso se concretizar como uma Democracia... No meu caso, me resta falar!


Londres, 13 de novembro de 2011

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Vontade de Potência como Liberdade, ou sobre porque um tomate não é melhor que a felicidade eterna

Nada é melhor do que a felicidade eterna. Na hora da fome, um tomate é melhor que nada. Logo, um tomate é melhor que a felicidade eterna?

O silogismo, base do pensamento dialético e de toda a filosofia ocidental – greco-romana – constitui o cerne de um sistema de pensamento dominante. Esse sistema, de sínteses provenientes de confrontação de oposições, como se vê, não é incólume a mascaramentos, induções, ou mesmo ironia da linguagem – senão seria legítimo afirmar que um tomate é, de fato, melhor que a felicidade eterna – que, em última análise, conduzem essa filosofia à adoção de padrões conceituais-morais totalizadores e inibidores da livre expressão individual. É, portanto, sobre a negação dessa trágica forma de pensamento e de seus desdobramentos que Nietzsche conduz sua negação do pensamento ocidental.

A questão que envolve o juízo niilista debate-se com a “ingenuidade moral”[1] das “certezas imediatas” do pensamento europeu, em particular o alemão, predicada no século XIX e que culmina na forma de “idéias modernas” tomadas como crença pelo homem e como mecanismo de conformação intelectual e moral do indivíduo em “animal-de-rebanho”. Esse totalitarismo nivelador da verdade “moderna” compreende e atenua toda a “vontade de potência”, vetor da liberdade individual, supostamente tida como a capacidade de que:

... se pudessem reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de potência e nela também se encontrasse a solução da geração e nutrição – isto é um problema - , com isso se teria adquirido o direito de determinar toda força eficiente univocamente como: vontade de potência. O mundo visto de dentro, o mundo determinado e designado por seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e nada além disso. (NIETZSCHE. 200:311. grifos do autor).

A manifestação dessa “vontade de potência” seria, assim, a expressão máxima da individualidade na superação dessa teologia moderna; caracterizaria a possibilidade de libertação de um sistema de pensamento baseado no “conhecer final”. Nesse contexto, a “vontade de potência” como liberdade de pensamento enfrenta a “teimosa e inexorável” postulação da crença moderna de que:

‘Eu sou a moral mesma, e nada além disto é moral!’ – aliás, com o auxílio de uma religião que se fazia a vontade dos mais sublimes apetites de animal-de-rebanho, e os adulava, chegou o ponto em que, mesmo nas instituições políticas e sociais, encontramos uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático é o herdeiro do cristão. (NIETZSCHE. 2000:322. grifos do autor).

Contrário a isso, a expressão da nobreza individual, em Nietzsche, encontra-se no posicionamento de uma filosofia avessa à “degeneração geral do homem”, afirmativa da potência do livre-pensar em si, em oposição à “escravidão” moral do “rebanho” que se funda em um utilitarismo afeito a uma visão cética e, mesmo, pessimista do mundo.

A liberdade se dá, nessa perspectiva, na superação da (in) verdade absoluta que postula uma pretensa legalização – institucionalização – da natureza humana, seja através de suas revoluções, seja por meio de seu sistema ótimo e final da democracia cristã. Dessa forma, a felicidade eterna, a liberdade pela “vontade de potência”, está na satisfação dessa fome com esse tomate moderno e em sua excreção do pensamento individual.



São Paulo, 12 de novembro de 2009


[1] Todas as palavras e expressões inseridas entre aspas foram retiradas do texto: NIETZSCHE, F. Para Além do Bem e do Mal: prelúdio de uma filosofia do porvir. In. Os Pensadores: Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 301-336, passin.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Poder e Liberdade em Shakespeare, ou a doutrina do morde e assopra

A noção de liberdade constrói-se em referência a um poder. Só há sentido em tratá-la, se há algo que possa constrangê-la. Dessa maneira, cabe ao príncipe a serenidade e a justiça necessárias à dosagem da virtude e da fortuna como elementos de um bom Governo.


Nesse contexto, será próspero o príncipe agraciado pela fortuna com a arte de tomar medidas extremas e, em certa medida tempestuosas, logo no início de seu governo. Assim, no início da dominação, após a conquista, convém que se reúnam os súditos e se lhes exponha os verdadeiros parâmetros de sua liberdade: “Vem. Acorrentarei teu pescoço aos pés. Beberás água do mar e, por alimento, terás mexilhões de água doce, raízes secas e cascas de frutos. Vem comigo” (SHAKESPEARE, 1991:95)[1].


Essa primeira impressão remete aos governados à fantástica realidade do governo. Apaziguada a comoção da investida no poder do novo príncipe e orientado o plano virtuoso do Status, cabe ao soberano afrouxar a mandíbula e arrefecer a mordedura. Reunidos novamente, ouvem os súditos a oferta da benevolência, condicionada a deveres:

Se te tratei com rigor excessivo, agoura encontras tua recompensa. [...] Então recebe minha filha, não apenas como oferta minha, mas como tua merecida conquista. Se, no entanto, desatares os laços de sua pureza antes de celebradas as cerimônias sagradas, o céu não haverá de derramar seu doce orvalho sobre esta aliança. E o ódio estéril, o desprezo e a discórdia hão de cobrir de espinhos vosso leito de núpcias. Assim, acabareis por detestá-lo” (SHAKEASPERE, 1991:119).


Dessa forma, em face dos direitos e deveres expressos, sela-se o contrato que permite a manutenção da ordem social e a garantia de sua segurança. Os governados, livres nesse contrato, o mantém sobre os dizeres:


Como espero dias serenos, filhos e vida longa para meu amor, nem mesmo o antro mais escuro, o lugar mais oportuno ou mais forte tentação será capaz de incendiar o meu desejo, para impedir essa celebração. Nesse dia, será como se o sol permanecesse eternamente no horizonte, e a noite acorrentada ao firmamento. (SHAKESPEARE, 1991:119/121).


Selado o compromisso do Status, o soberano, por seu ministério, confere aos súditos a devida proteção e o gozo da prosperidade, ordenando a seu leão alado: “Necessito de outra artimanha semelhante. Vai chamar os espíritos que mantenho às tuas ordens. Traze-os para cá. Pois quero oferecer a estes jovens uma demonstração de minha arte. Fiz esta promessa. Eles estão esperando” (SHAKESPEARE,1991:121).


A manutenção desse virtuoso governo, uma vez fundada na fortuna, dependerá, contudo, da justiça principesca. Disporá de um longo governo aquele que assopre o julgamento:


Embora tenham-me ferido com seus crimes, ainda assim farei prevalecer minha razão, e não a minha fúria. O perdão vale mais do que a vingança. Se arrependeram, não há por que insistir na punição. Vai soltá-los, Ariel. Vou quebrar o encantamento e devolver-lhes a razão. (SHAKESPEARE, 1991:139).


O desiderato racional redundará na prosperidade do governo. No entanto, a manutenção ordem aos governados dependura-se na linha tênue entre a força da mordida e a sutileza do assopro. Dessa forma, na menor variação do pêndulo da virtude e da concessão da liberdade: “Chegará o dia em que as torres coroadas de nuvens, os palácios resplandecentes, os templos solenes e mesmo o globo imenso, e tudo quanto lhe pertence, vão desaparecer sem deixar rastros, como se dissolveu esse espetáculo” (SHAKESPEARE,1991:129).


Ao soberano, de fato, cabe a arte da temperança. Da tempestade à bonança: a justiça selará o valor da liberdade. O contrato social resplandecerá seu poder na medida em que o súdito consinta à afirmação: “Serás tão livre quanto os ventos das montanhas. Mas deves seguir rigorosamente as minhas ordens” (SHAKESPEARE,1991:57).

São Paulo, 27 de setembro de 2009


[1] SHAKESPEARE, W. A Tempestade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Na cama com Santo Agostinho, ou a tragédia da liberdade

O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma cadeia com que me apertava. Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. Era assim que por uma espécie de anéis entrelaçados – por isso lhes chamei cadeia –, me segurava apertado em dura escravidão. A vontade nova, que começava a existir em mim, a vontade de Vos honrar gratuitamente e de querer gozar de Vós, ó meu Deus, único contentamento seguro, ainda se não achava apta para superar a outra vontade, fortificada pela concupiscência. Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal, outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilacerava-me a alma. (AGOSTINHO. 2000:209)[1].


A tragédia da liberdade se encontra na vontade. A tomada de decisão e a opção por um caminho diferente da natureza individual consistem no doloroso processo de manifestar-se na grande política. Assim, a expressão livre da vontade, contrariando o pessoal em nome do moral, o individual em nome do coletivo e o terreno em nome do divino, representa o ápice do auto-cerceamento da liberdade em prol de uma instituição simbólica superior.

Esse é o contexto da conversão agostiniana ao catolicismo e, alegoricamente, da sujeição individual ao Estado. O enfrentamento dos “prazeres da carne” e das questões relativas a um modo de vida mundano pelo Santo faz paralelo à constrição da liberdade individual pelo ser político-divino moderno. Em ambos os casos, a política ocorre no leito, na cama onde ora se trava a laboriante luxúria, ora se vive a epifania da revelação do superlativo.

Responder à vontade primária das relações de espécie, manifestando os veios individuais do estado de natureza, representa o exercício político da liberdade plena. Assim o viveu Agostinho em seu êxtase pré-conversão. Essa foi a sina das pequenas coletividades anteriores ao estabelecimento de regras cogentes que, aceitas por volição, minoraram o aspecto licencioso da existência. Antes disso,

[...] os próprios prazeres da vida humana não se apossam do coração do homem só por desgraças inesperadas e fortuitas, mas por moléstias previstas e voluntariamente procuradas. Não há prazer nenhum no comer e beber, se o incômodo da fome e da sede não o precede. (AGOSTINHO. 2000:206/207).

Estar na cama negra da política primordial correspondia, nessa perspectiva, ao pleno exercício da individualidade contra o coletivo, na possibilidade de não viver o incômodo por não se ter restrição ao saná-lo. A segunda política, por seu turno, precisou criar uma entidade superior para se fazer grande. Para tanto, um fator foi o grande responsável para o direcionamento agostiniano/individual ao leito branco da virtude: a atribuição de significado ao supremo uno.

Para Santo Agostinho, o cerceamento da vontade primária, da liberdade de exercício político fundamental, só se deu com a vontade de se submeter ao totalizante:

Com efeito, não só ir ao céu, mas também atingi-lo não são mais que o querer ir, mas um querer forte e total, não uma vontade tíbia que anda e desanda daqui para ali, que luta consigo mesma, erguendo-se num lado e caindo no outro. (AGOSTINHO. 2002:216. grifos do autor).

Tal Confissão evidencia que a liberdade pura só passa a ter significado quando submetida a algo capaz de dotar sentido à vontade. Tal ocorre, também, na opção pelo Estado da grande política. Nele, o leito limpo e puro do exercício coletivo das vontades só se realiza no ambiente pleno do cerceamento da liberdade individual em função daquilo que é supremo, pretensamente seguro.

A tragédia da liberdade, nesse contexto, não se encontra na sua ausência ou dissipação, mas na sua plenitude. Está no fato de o exercício dessa prerrogativa ser de tal abrangência que se permite, inclusive, vincular-se e restringir-se perante algo. A escolha pela atribuição de significado ao totalizante – ao Deus único, ou ao Estado – e pela sujeição da vontade individual a esse coletivo – o Deus de todos e o Estado para todos – estão no cerne dessa transição de uma política da individualidade para uma política do coletivo.

Por conseguinte, já não importa mais a plena liberdade, ao contrário, o que impera é a decisão de sujeitá-la ao poder sublime. A guerra de vontades é o que melhor demonstra esse paradoxo político, desvendando que Ser Livre pode tanto Ser-de-Vontade, como também pode Vontade-de-Ser. Na primeira forma vive-se a liberdade; na segunda, a tragédia da existência na grande política.



São Paulo, 10 de setembro de 2009



[1] AGOSTINHO, S. Confissões. In. Os Pensadores: Santo Agostinho. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Da idade da pedra à idade do cascalho...

A Folha online noticiou e eu fiquei abismado: Seção "Cotidiano"; Manchete "Vítimas reagem a raquetadas e ladrões são presos em Curitiba". Só para constar: não se trata da Folha; não se trata de Curitiba; se trata da banalização da violência! Como podemos passar por um momento histórico em que uma seção jornalística de massa dedicada ao quotidiano anuncia banalmente a prisão de bandidos após a resistência das vítimas a uma agressão física e com uma agressão física!

Desculpe, mas de onde eu venho o "caderno policial" é só o começo dessa discussão. Segue-se o "caderno de política"; Sim! pois o que falta é uma política de segurança pública; uma política educacional; uma política de geração de emprego e renda (EMPREGO, viu, bolsa família!?!). E talvez um caderno setorial, um "fala comunidade".

De fato, chegar ao ponto em que um "Caderno de Cotidiano" noticie atos (criminosos graves) de violência como algo corriqueiro é o mesmo que dizer que: "Vovó errou a receita do bolo de fubá. Tá esclerosada, tadinha!". O problema não é que se tenha noticiado, que bom que se o fez! O problema não é que isso seja difundido como uma agressão pessoal e social. O espanto está que isso seja entendido (por um veículo de comunicação muito respeitado) como algo normal (inaceitável, mas quotidiano!!!!).

Não quero discutir as funções de um "caderno quotidiano", muito menos as intenções do editor, jornalista ou quem quer que tenha decidido pela publicação da notícia. Me preocupa, por certo, que tenhamos chegado a esse patamar! Após todas as promessas da modernidade (e até da pós-modernidade - ainda tentem me provar isso), evoluímos à idade do cascalho, ou seja, após transformar a pedra em roda, utilizá-la para fazer faísca (e fogo), consumimos tudo o que ela nos podia dar e ficamos com o cascalho... E para que serve o cascalho?

Os ecologistas que ainda venham provar o contrário (também se aceita argumentos de engenheiros da produção), mas o cascalho não nos serve de nada (ainda). Iniciar uma era em que se permita (socialmente, não se trata de de censura, mas de se aceitar a anomia!) uma regressão à banalização da violência, a um "pré-tribalismo" que ratifica os atos de força, é dar dois passos para trás, para dar mais um atrás.

Em quem botar a culpa então? Claro! nos sentiremos mais seguros se culparmos o jornalista, o jornal, o prefeito, o presidente, os políticos, a Rainha da Inglaterra. Nos esquecemos apenas que o que falta é uma ação social intensa, comprometida e responsável.
Estivemos por muito tempo (no Djibut, no Brasil é diferente) à espera de que alguém viesse nos doar uma alternativa legal, institucional, salvadora, para os nosso problemas. Nos imiscuímos de pensar no projeto da Era Moderna (as velhas: liberdade, igualdade e fraternidade), confiando que algum baluarte da sociedade o faria por nós. E cá estamos escandalizados (?) com a nóticia quotidiana de uma ato de violência motivado por um ânimo mesquinho.

Uma tentativa de roubo frustrada - afinal, o que duas mulheres, vítimas eternas da sociedade (sim, isso é uma crítica e um elogio ao feminismo) poderiam fazer contra homens com chaves-de-fenda - resolvida à raquetadas. Noticiada pelo "Caderno Cotidiano" do maior meio de difusão de mídia impressa do país. Um retrocesso no entendimento da sociedade, das suas formas de organização, das instituições que a compõe. Uma reafirmação da falta de argamassa para unir nosso cascalho.

sábado, 5 de julho de 2008

Tortalitarismo Democrático de Direito

Durkheim deve estar feliz! E se acredita em reencarnação, deve estar doido para voltar e ver o êxito, o ápice da consolidação de sua "solidariedade orgânica" a que finalmente se chega. Não é pra menos, as políticas de totalidade e restrição que se presencia nos últimos tempos são alarmantes.

Mas do que se trata uma política de totalidade? Bem, não é tão simples, nem pouco controverso, contudo, diz respeito ao seguinte: o Estado que constitucionalmente regula a atividade pública - leia-se estatal - dá liberdade à ação social privada - no Brasil, art. 5o. no. II da Constituição - legal e não criminosa, óbvio! Nesse sentido, os últimos anos da história brasileira - e mesmo mundial - têm testemunhado justamente o contrário; a cada dia que passa há uma nova lei para dizer o que se deve fazer, como proceder e, pior, justificando que o Estado faz isso para preservar o bem da sociedade, utilizando-se dos mecanismos democráticos de direito.

Antes que o Estado se esqueça, é bom lembrá-lo que os princípios que ainda valem enquanto projeto de sociedade são os iluministas, da modernidade - os pós-modernos que provem o contrário. Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ou seja, para assegurar uma pretensa igualdade de direito, suprime-se a liberdade, mandando-se a fraternidade para o quito dos infernos - e não se trata do Brasil - e volta-se à Maquiavel, justificando-se os meios pelos fins. Não só se volta ao absolutismo, como se permite absolutizar tudo, democraticamente é claro!

Os fatos! Quais seriam os fato?!? Para não cair no enciclopedismo, é bom citar apenas alguns mais grotescos: utilização da polícia para constranger o direito de manifestação; restringir o acesso a determinadas áreas a partir da cobrança de pedágios ou aplicação de multas; multas, multas e multas, para quem fumar, beber, não aceitar o toque de recolher da lei seca, fizer greve e, contendo o crescimento vegetativo, para quem nascer.

A questão do direito de manifestação é gritante - e só se comentará esse caso para não cair em maiores elucubrações e prolixidades. Recentemente a cidade de São Paulo presenciou dois absurdos com relação a isso: o primeiro, na manifestação dos caminhoneiros por acesso em horário comercial ao centro expandido, utilizou-se a polícia para impeli-los de chegar à Prefeitura, onde pretendiam conseguir uma audiência o prefeito; o segundo, na passeata dos professores grevistas, na qual a mesma polícia os escoltou e os constrangeu a manifestar-se na calçada (foto), sob pena de multa. A justificativa para ambos os casos: permitir a fluidez do trânsito de veículos.


Há mesmo que se reescrever a história. Imaginem só! Um manifestante, numa dada praça da paz celestial, que tenta impedir o já dificultado trânsito de veículos pesados. E para que? Só para ter liberdade? E com o Estado já lhe garantindo a igualdade - o Brasil vai no mesmo caminho - vejam só! E tem mais, como esse estorvo atrapalha o fluxo de carros de defesa, deve ser apenado com a morte e, principal, a família paga a bala! Quanto a pena de morte, é bom frisar que ela deve ser legalizada para os casos de corrupção e de crime do colarinho branco, talvez vivêssemos melhor - mas isso é apenas um pedido de socorro, o Estado que idealmente deve ser racional, não pode mancomunar com isso.

Falando em história, o fato mais espantoso dos últimos dias foi a polêmica causada pela estátua de cera de Hitler (foto) no museu Madame Tussaud de Berlim. É deplorável que ainda se queira esconder os acontecimentos e os ícones históricos, para o bem ou para o mal, isso apenas contribui para envolvê-los em uma auréola de mistério, fantasia e endeusamento. Saindo de toda a discussão pseudo-marxista reacionária de que o museu quer lucrar com a estátua, de fato a representação daquele tirano serve para mostrar que esse tipo de personagem histórica é apenas humana; vulnerável às vontades democráticas e aos mesmos princípios da liberdade e da igualdade que a fraternidade se propõe a fazer valer.


Mas em que isso tem a ver com um totalitarismo democrático de direito? Em nada, totalitarismo democrático de direito é apenas um devaneio desse que vos escreve, serve apenas para alertar que caminha-se - a humanidade dos passos de formiga - para uma paralisia do espaço público, da vida quotidiana e tudo isso justificado por uma democracia praticada por indivíduos - políticos profissionais - preocupados com o resultado das próximas eleições. Não se trata, por fim, de uma sobrevalorização da liberdade, mas de uma lembrança de que ela deve caminhar no mesmo ritmo das outras duas. Caso contrário, podemos preparar a festa de boas vindas para o reencarnado - e conservador - sociólogo francês.