domingo, 14 de fevereiro de 2010

Vontade de Potência como Liberdade, ou sobre porque um tomate não é melhor que a felicidade eterna

Nada é melhor do que a felicidade eterna. Na hora da fome, um tomate é melhor que nada. Logo, um tomate é melhor que a felicidade eterna?

O silogismo, base do pensamento dialético e de toda a filosofia ocidental – greco-romana – constitui o cerne de um sistema de pensamento dominante. Esse sistema, de sínteses provenientes de confrontação de oposições, como se vê, não é incólume a mascaramentos, induções, ou mesmo ironia da linguagem – senão seria legítimo afirmar que um tomate é, de fato, melhor que a felicidade eterna – que, em última análise, conduzem essa filosofia à adoção de padrões conceituais-morais totalizadores e inibidores da livre expressão individual. É, portanto, sobre a negação dessa trágica forma de pensamento e de seus desdobramentos que Nietzsche conduz sua negação do pensamento ocidental.

A questão que envolve o juízo niilista debate-se com a “ingenuidade moral”[1] das “certezas imediatas” do pensamento europeu, em particular o alemão, predicada no século XIX e que culmina na forma de “idéias modernas” tomadas como crença pelo homem e como mecanismo de conformação intelectual e moral do indivíduo em “animal-de-rebanho”. Esse totalitarismo nivelador da verdade “moderna” compreende e atenua toda a “vontade de potência”, vetor da liberdade individual, supostamente tida como a capacidade de que:

... se pudessem reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de potência e nela também se encontrasse a solução da geração e nutrição – isto é um problema - , com isso se teria adquirido o direito de determinar toda força eficiente univocamente como: vontade de potência. O mundo visto de dentro, o mundo determinado e designado por seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e nada além disso. (NIETZSCHE. 200:311. grifos do autor).

A manifestação dessa “vontade de potência” seria, assim, a expressão máxima da individualidade na superação dessa teologia moderna; caracterizaria a possibilidade de libertação de um sistema de pensamento baseado no “conhecer final”. Nesse contexto, a “vontade de potência” como liberdade de pensamento enfrenta a “teimosa e inexorável” postulação da crença moderna de que:

‘Eu sou a moral mesma, e nada além disto é moral!’ – aliás, com o auxílio de uma religião que se fazia a vontade dos mais sublimes apetites de animal-de-rebanho, e os adulava, chegou o ponto em que, mesmo nas instituições políticas e sociais, encontramos uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático é o herdeiro do cristão. (NIETZSCHE. 2000:322. grifos do autor).

Contrário a isso, a expressão da nobreza individual, em Nietzsche, encontra-se no posicionamento de uma filosofia avessa à “degeneração geral do homem”, afirmativa da potência do livre-pensar em si, em oposição à “escravidão” moral do “rebanho” que se funda em um utilitarismo afeito a uma visão cética e, mesmo, pessimista do mundo.

A liberdade se dá, nessa perspectiva, na superação da (in) verdade absoluta que postula uma pretensa legalização – institucionalização – da natureza humana, seja através de suas revoluções, seja por meio de seu sistema ótimo e final da democracia cristã. Dessa forma, a felicidade eterna, a liberdade pela “vontade de potência”, está na satisfação dessa fome com esse tomate moderno e em sua excreção do pensamento individual.



São Paulo, 12 de novembro de 2009


[1] Todas as palavras e expressões inseridas entre aspas foram retiradas do texto: NIETZSCHE, F. Para Além do Bem e do Mal: prelúdio de uma filosofia do porvir. In. Os Pensadores: Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 301-336, passin.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Poder e Liberdade em Shakespeare, ou a doutrina do morde e assopra

A noção de liberdade constrói-se em referência a um poder. Só há sentido em tratá-la, se há algo que possa constrangê-la. Dessa maneira, cabe ao príncipe a serenidade e a justiça necessárias à dosagem da virtude e da fortuna como elementos de um bom Governo.


Nesse contexto, será próspero o príncipe agraciado pela fortuna com a arte de tomar medidas extremas e, em certa medida tempestuosas, logo no início de seu governo. Assim, no início da dominação, após a conquista, convém que se reúnam os súditos e se lhes exponha os verdadeiros parâmetros de sua liberdade: “Vem. Acorrentarei teu pescoço aos pés. Beberás água do mar e, por alimento, terás mexilhões de água doce, raízes secas e cascas de frutos. Vem comigo” (SHAKESPEARE, 1991:95)[1].


Essa primeira impressão remete aos governados à fantástica realidade do governo. Apaziguada a comoção da investida no poder do novo príncipe e orientado o plano virtuoso do Status, cabe ao soberano afrouxar a mandíbula e arrefecer a mordedura. Reunidos novamente, ouvem os súditos a oferta da benevolência, condicionada a deveres:

Se te tratei com rigor excessivo, agoura encontras tua recompensa. [...] Então recebe minha filha, não apenas como oferta minha, mas como tua merecida conquista. Se, no entanto, desatares os laços de sua pureza antes de celebradas as cerimônias sagradas, o céu não haverá de derramar seu doce orvalho sobre esta aliança. E o ódio estéril, o desprezo e a discórdia hão de cobrir de espinhos vosso leito de núpcias. Assim, acabareis por detestá-lo” (SHAKEASPERE, 1991:119).


Dessa forma, em face dos direitos e deveres expressos, sela-se o contrato que permite a manutenção da ordem social e a garantia de sua segurança. Os governados, livres nesse contrato, o mantém sobre os dizeres:


Como espero dias serenos, filhos e vida longa para meu amor, nem mesmo o antro mais escuro, o lugar mais oportuno ou mais forte tentação será capaz de incendiar o meu desejo, para impedir essa celebração. Nesse dia, será como se o sol permanecesse eternamente no horizonte, e a noite acorrentada ao firmamento. (SHAKESPEARE, 1991:119/121).


Selado o compromisso do Status, o soberano, por seu ministério, confere aos súditos a devida proteção e o gozo da prosperidade, ordenando a seu leão alado: “Necessito de outra artimanha semelhante. Vai chamar os espíritos que mantenho às tuas ordens. Traze-os para cá. Pois quero oferecer a estes jovens uma demonstração de minha arte. Fiz esta promessa. Eles estão esperando” (SHAKESPEARE,1991:121).


A manutenção desse virtuoso governo, uma vez fundada na fortuna, dependerá, contudo, da justiça principesca. Disporá de um longo governo aquele que assopre o julgamento:


Embora tenham-me ferido com seus crimes, ainda assim farei prevalecer minha razão, e não a minha fúria. O perdão vale mais do que a vingança. Se arrependeram, não há por que insistir na punição. Vai soltá-los, Ariel. Vou quebrar o encantamento e devolver-lhes a razão. (SHAKESPEARE, 1991:139).


O desiderato racional redundará na prosperidade do governo. No entanto, a manutenção ordem aos governados dependura-se na linha tênue entre a força da mordida e a sutileza do assopro. Dessa forma, na menor variação do pêndulo da virtude e da concessão da liberdade: “Chegará o dia em que as torres coroadas de nuvens, os palácios resplandecentes, os templos solenes e mesmo o globo imenso, e tudo quanto lhe pertence, vão desaparecer sem deixar rastros, como se dissolveu esse espetáculo” (SHAKESPEARE,1991:129).


Ao soberano, de fato, cabe a arte da temperança. Da tempestade à bonança: a justiça selará o valor da liberdade. O contrato social resplandecerá seu poder na medida em que o súdito consinta à afirmação: “Serás tão livre quanto os ventos das montanhas. Mas deves seguir rigorosamente as minhas ordens” (SHAKESPEARE,1991:57).

São Paulo, 27 de setembro de 2009


[1] SHAKESPEARE, W. A Tempestade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.